sábado, 3 de janeiro de 2015

A MINHA VIAGEM DE SONHO

A MINHA VIAGEM DE SONHO

Na minha adolescência foi sempre minha aspiração viajar e correr mundo. Ai  de mim que as viagens mais frequentes eram até Casa Branca, terra dos meu pais e, lá muito de longe em longe, uma saída até Lisboa, onde o meu irmão estudava.
Foi já depois de casada que consegui ir concretizando o meu sonho.
Viajei muito mais do alguma vez imaginara e posso dizer que conheço a maior parte da Europa e não só. A maior parte das vezes na companhia da minha amiga Aura.
Mas há uma viagem que ficou para mim inesquecível e se sobrepõe a todas as outras. Foi em Agosto de 1978.
Tinha eu na altura um Datsun 1300 muito grande , com um banco corrido na frente e o meu bom amigo Albardeiro logo o cobiçou para irmos dar uma volta por toda a orla marítima de Espanha, saíndo pelo norte de Portugal ,passando por Andorra e França. Viajei muito com estes amigos mas estas férias nunca irei esquecer.
Iria eu com as minhas filhas e marido e o João e a Ana.
Já os preparativos eram um gozo adiantado com mapas estendidos na mesa onde iam sendo marcados os itinerários tudo resolvido unicamente pelo chefe que não nos pedia opinião. A Ana veio a minha casa com um qualquer tecido bera e eu fiz-lhe um reduzidíssimo biquini que mal se via quando molhado. Na bagagem tínhamos ordens severas de só incluirmos o absolutamente indispensável, tanto no que tocasse a roupa como para tudo o resto. A Ana apenas levou o seu belo biquini e um ligeiríssimo vestido de alças. Para mim e minhas filhas ainda meti mais uma peça para além do biquini. 
A tenda, colchões, fogareiro e talheres foram atados no tejadilho como era costume naqueles tempos. Na frente sentavam-se os homens com um grande saco ao meio com o resto dos pertences e atrás nós quatro. Quando nos sentávamos íamos quase ao colo umas das outras mas, como o calor era muito. e viajávamos sempre de biquini, começávamos a suar e lá nos conseguíamos ajeitar. 
Tínhamos uma carteira comum que se ia gastando e renovando sempre que necessário, quatro partes para mim duas para eles. Eu e a Ana ficámos encarregadas das compras e refeições, mas o chefe trazia-nos de rédia curta e nunca na minha vida comi tanta salada e latinha de conserva como naqueles dias. Uma vez por outra assávamos umas sardinhas ou grelhávamos carne.  Apanhámos um calor de esturricar e as gaiatas pediam um gelado. Em vão porque só quando ele lá resolvia muito de longe em longe surgia um geladinho para todos. Era dia de festa!
A tenda era daquelas com um quarto e uma arrecadação que ele deixou em casa levando apenas a cobertura.
A montagem da tenda era um espetáculo: ele ficava com os ferros, o Jacinto com o pano eu com as estacas que a Ana ia martelando e as gaiatas acabavam de arrumar colchões e sacos cama. Batemos um honroso recorde de sete minutos ...
Arranjou um mapa dos parques de campismo à beira mar e todas as noites acampávamos num parque diferente.
Como não levávamos mesa nem cadeiras era encostadas ao capot do carro que tomávamos as nossas belas refeições. O que nós gozámos 
num dos parques quando, apanhando os donos a tomar banho na praia, nos apoderámos de mesas e cadeiras e comemos sentados que nem uns lordes...
Muitas foram as peripécias desta viagem e não resisto a contar algumas delas. 

Ainda em França, em Pons, chegámos tão tarde que já não encontrámos parque de campismo. Uns populares disseram-nos que poderíamos pôr a tenda ao pé do complexo desportivo que ficava um pouco afastado. Noite cerrada, a custo armámos a tenda e, de cansados que estávamos, logo dormimos. Às tantas acordámos muito sobressaltados com um restolhar e conversa de homens. A custo conseguimos calar as minhas filhas mas entrámos todos em pânico. Os homens levantaram-se sorrateiramente cada um com seu martelo dispostos a abrir a cabeça aos assaltantes. Chegados lá fora viram um bando de rapazes de viola e algumas cervejas dispostos a passar um  serão  divertido fcomo era costume fazerem frequentemente ali naquele local. Um resto de noite descansados e ao acordar de manhã vimos que estávamos num sítio lindíssimo com um largo rio a correr junto de nós. Mas lá estava uma tabuleta para aterrorizar a Lena que dizia : cuidado! enchentes súbitas ! Toda a gente viu que seria no inverno mas, quem a convencia?
O rio era largo e com uma grande corrente mas com pé.  Ao lavar-me deixei cair os dentes. Grande choro, promessa de se fazer nova placa em Barcelona, quando o Albardeiro pondo os seus conhecimentos científicos e a sua persistência ao serviço do próximo, conseguiu o milagre: ao fim de meia hora de porfiados esforços num rio com uma corrente fortíssima e quando todos já haviam desistido há muito trouxe para terra os três destinos que tanta falta faziam à velhota.
Ainda hoje não compreendo como  ele o conseguiu. O leito do rio  tinha milhares de seixos branquinhos e pequeninos. A placa era transparente deixando apenas ver os dentes que eram iguais aos seixos.

A minha Lena andava perdida de amores por um  rapazinho de Lisboa que estava acampado na serra de Gredos , penso que a mais alta de Espanha, 4000 e tal metros. Tanto chateou o João que ele lhe fez a vontade. Chegados lá não me lembro já se encontrámos o rapaz mas esperáva-nos um panorama fantástico e umas cataratas que caíam num lago natural de água límpidas onde os campistas se banhavam deliciados.

Para reduzir a bagagem não levámos mesa nem cadeiras e era no capot do carro que nos servíamos das nossas saladas. Perto de Valência resolvemos estender uma toalha no chão , não muito limpo ,  como no resto de Espanha e fazermos um piquenique. Mal tínhamos começado a comer vimos vir em nossa direção um manifestação não sei se proibida porque às tantas choviam tiros de todos os lados. Em segundos juntámos os quatro cantos da toalha com tudo lá dentro e em menos de um fósforo metemo-nos no carro e fugimos dali a toda a pressa.

Em Barcelona fomos acampar no parque Calagogo que à data era um dos melhores da Europa. Armámos a tenda debaixo de chuva e debaixo da mesma fomos para a praia tomar banho sob os olhares trocistas dos outros campistas. Mar esplêndido sem ondas e quentinho. De regresso ao parque metemo-nos numas belas piscinas aquecidas de onde só a custo saímos.
Uma surpresa nos aguardava: a á gua quente do duche era paga e os pelintras ainda que de má vontade lá se foram refrescar com um belo duche de água gelada...

Em Torreblanca saímos para comprar o almoço  e tivemos que esperar por uma enorme procissão que estava a passar. Todas quatro em biquini a ver passar a procissão perante o olhar reprovador de toda aquela gente...

Em Huelva esperáva-nos uma surpresa desagradável. Logo à entrada do parque vimos toda a fachada da receção negra de fogo recente. A ETA lançara ali na véspera uma potente  bomba. Agradecemos o facto do atraso que tivéramos na viagem que nos fez passar por ali um dia depois...

Chegados a Sevilha, feitas as contas ao que sobrara das nossas economias, foi-nos dito pelo "patrão" que iríamos ter um dia inesquecível.
E levou as quatro maltrapilhas a um bom restaurante onde tivemos um almoço de princesas, comodamente sentadas e a ser servidas com toda a deferência
por empregados atenciosos.
Mas não se ficou por aqui. À noite levou-nos ao melhor tablado de Sevilha para um serão deslumbrante de bailado flamengo que nunca poderei esquecer. 
Só quem tenha passado por uma contenção nas despesas como  nos aconteceu pode imaginar como aquela situação foi para nós como um sonho feito realidade.

Obrigada João por estas e muitas outras vivências que me proporcionaste.
Nunca te esquecerei, amigo.

ACADEMIA SÉNIOR DE ESTREMOZ

ACADEMIA SÉNIOR DE ESTREMOZ

Listagem de acontecimentos que mudaram o rumo da minha vida:

1-sair de casa dos meus padrinhos onde fui criada quando da sua abalada pra Angola
2-ser obrigada a abandonar os estudos e seguir um curso que não queria
3-a primeira vez que dei escola 
4-a saída de casa dos meus pais para a minha casa depois de casar
5-a morte dos meus filhos
6-voltar a dar aulas
7-a entrada na Academia Senior de Estremoz

É sobre este último acontecimento que vou hoje falar aqui.

Muitos acontecimentos, de algum modo, mudaram completamente o rumo da minha vida. Escolho entre todos o momento em que entrei para a Academia Sénior de Estremoz

ACADEMIA SÉNIOR DE ESTREMOZ

Ouvia falar à minha irmã mais velha e a algumas amigas, na Universidade Sénior que frequentavam e sentia grande desejo que em Estremoz houvesse uma coisa igual. Mas nem em Évora, cidade de tradição universitária, ainda tinha sido criada. Muitas foram as vezes em que falei com o meu amigo Abílio, presidente da Câmara, a pedir-lhe que abrisse em Évora uma Universidade para os velhotes. Estava tão interessada que me deslocaria até lá para frequentar as aulas.
VFoi durante  a presidência do Alberto Fateixa que finalmente foi criada a Academia Sénior de Estremoz, honra lhe seja feita.
Ainda hoje não sei o porquê de não ser Universidade. Seja como for, ao contrário de todas de que tenho conhecimento, aqui não se paga nada e os professores são voluntários. Funciona no Centro Cultural Dr Marques Crespo  onde ocupa 4 salas para além do auditório onde são dadas as aulas de Ginástica e Canto.
Fui das primeiras pessoas a inscrever-se e em todas as disciplinas que já estavam asseguradas e noutras que eram apenas mera hipótese.
Foi das melhores coisas que me aconteceram.
Sou feliz  aqui, com o são convívio entre nós e com todas as aprendizagens que vou fazendo.
Tenho aulas de Inglês, Cultura, Poesia e Conto, Bordados e Trapologia, Computadores, Teatro, Ginástica e Pintura.
Ainda andei na Dança e no Canto mas tive de desistir por não ter as condições físicas requeridas. Este ano não houve aulas de Inglês por não haver professor disponível.
Eu própria ainda dei Alfabetização e Português, mas as alunas começaram a faltar por razões de saúde delas e dos familiares e, por enquanto, estamos paradas.
Temos uma biblioteca com perto de          volumes,  oferta de amigos e professores da Academia. Ainda não está a funcionar talvez por negligência minha e da Aura que ainda não acabámos a catalogação.
No verão passado aproveitámos a sala para nos reunirmos para a "hora do tricot". Para além de tricotarmos bebíamos o chá acompanhado por bolinhos que levávamos. Enfim aproveitamos todos os pretestos para estarmos juntas e passarmos bem o tempo...
Há dez ou onze anos que abriu a Academia e tenho adorado aqui andar.
Tanta gente interessante que conheci e de quem fiquei amiga! 
O convívio nas aulas, o muito que aprendi nas várias disciplinas, os trabalhos que produzi em várias áreas, principalmente na Pintura,  Bordados e Internet.
Todos os anos expomos as nossas obras que são sempre muito apreciadas.
Na aula de Poesia e Conto da professora Zuzu, depois de lermos alguns contos e muita poesia, foi-nos sugerido lançarmo-nos na aventura da escrita criativa.
Tendo como base o livro de Pedro Sena-Lino, "A minha vida num livro", pusemos mãos à obra e todas descobrimos em nós alguns dotes para a escrita que não pensávamos ter. 
Perdemos o medo de nos expormos publicamente, contando factos da nossa vida particular, que estavam esquecidas em algum recôndito da nossa memória   e que aí ficariam para sempre.
Temos duas ou três poetisas de serviço que nos têm deliciado com os seus belos poemas.
Escrevo os meus textos no iPad e muitas vezes apagavam-se sem compreender porquê.
Foi quando o meu neto João me deu a ideia de os publicar no facebook porque ali não se perderiam. A princípio não aceitei lá muito bem a ideia ainda mais quando na privacidade marcou 'só para amigos'. Ora, pelo menos na minha página, "amigos",  para além dos propriamente ditos, são toda uma multidão de conhecidos ou mesmo completamente desconhecidos. O erro deve ser meu e da minha fraca apetência para trabalhar nestas coisas...
Um resultado tirei no facebook:  a minha família tem-me agradecido a publicação das estórias, algumas delas desconhecidas da grande maioria.
Também alguns amigos têm feito o favor de deixar comentários que muito agradeço. 
Continuo a escrever mas nem tudo publico. Penso que são coisas muito particulares que não interessam a mais ninguém como alguém me disse há dias.
Mesmo não concordando muito com essa pessoa, fiquei um pouco alerta...
Gosto muito das aulas de Cultura dadas pelo professor Mateus. Muitas das várias matérias brilhantemente preparadas pelo professor deram lugar a ótimos passeios de estudo.
Presentemente foi-nos proposto sermos nós os alunos a preparar a aula talvez também para descanso do professor que anda cheio de trabalho.
A pesquisa é sobre o azulejo em Estremoz. Formaram-se vários grupos e foram distribuídos os locais onde cada estudo recairia. Saíram trabalhos muito interessantes que foram apresentados em diversos suportes: em papel, em slides, em PowerPoint,  etc.
Calhou-me a mim fazer o estudo da azulajeria nos conventos e trabalhar com o colega Joaquim Correia. 
Ainda fiz uma pequena pesquisa na internet que pouco resultou e não consegui encontrar-me com o colega. Felizmente chegou-se à conclusão que este tema se sobrepunha a outros já trabalhados. Juntei-me então com a Neida e vamos fotografar e documentarmos-nos sobre os azulejos existentes na Igreja dos Mártires, na Igreja da Nossa Senhora da Conceição e mais outra pequena  igreja existente no Castelo e da qual não sei o nome. Por enquanto ainda não nos reunimos para começar...
Está combinado um passeio ao Museu do Azulejo em data ainda a marcar por indisponibilidade do autocarro da Câmara.
O professor tem em vista produzir um livro com o resultado de todos os trabalhos.
Também gosto muito das aulas de teatro com a Luz. Tem experimentado connosco opções de ambientes que compõem os espetáculos que temos apresentado. Tem gostado da disponibilidade que tem encontrado em todas nós e que talvez não fosse possível encontrar em artistas profissionais com quem trabalha.
No dia  28 de Março estivemos em Alandroal onde fomos muito bem recebidos. 
Já nos apresentámos  em Évora, Redondo, Mourão e umas quatro vezes em Estremoz. Temos sido muito aplaudidos em todas as nossas saídas.
QO próximo "espetáculo" será muito provavelmente no Redondo.
E tem sido assim que tenho preenchido ultimamente a minha vida a fazer coisas que me dão muito prazer, que me obrigam a sair de casa todos os dias apesar de todas as dores que me atormentam.

AS ESCOLAS

AS ESCOLAS

Estava eu a dar aulas em Cabeça de Carneiro quando pedi a exoneração pela primeira vez. Ia casar-me em 9 de junho e resolvi sair antes disso. 
Tinha feito o curso muito contrariada e nunca fora de minha escolha ser professora com tudo o que isso implicava na época de Salazar.
Quem como eu residia na aldeia onde dava escola tinha que receber o padre na sala de aulas, preparar as crianças para a comunhão e, se lá ficava no fim de semana, arranjar uma boa desculpa para não ir à missa e assistir à cerimónia final. 
O ensino no tempo do fascismo era todo virado para passar às crianças tudo o que devíamos a Salazar: as estrada, as pontes, a paz, tudo isto veiculado ao mais pequeno pormenor nos manuais escolares. Acima dele unicamente Deus!
 Tornava-se insuportável para mim dar aulas e afirmar coisas em que nem de longe acreditava e contra as quais sempre me havia batido.
Embora gostasse muito de crianças e de ensinar não via a hora de me livrar daquele martírio. E foi o casamento que me salvou.
Com o acordo do Jacinto pedi a exoneração e fiquei em casa. Dei explicações,  
muitas delas de graça, porque gostava mesmo de ensinar.
Depois dei aulas de francês e matemática na Telescola dirigida pelo professor Amaro.
O Jorge Simões foi durante uns tempos professor de Educação Visual na Escola Secundária de Estremoz. Quando foi chamado para a tropa resolveu dar o salto para a Bélgica e assim se escapar de ir para a guerra.
A minha cunhada Natália conseguiu convencer-me a substituí-lo e assim me tornei professora de Educação Visual durante três anos. Às tantas apareceu no mini concurso uma rapariga que disse ter o curso da António Arroio. Como eu não tinha tantas habilitações. Foi-me proposto ficar a dar aulas no Ciclo Preparatório o que não aceitei e aí pedi a minha segunda exoneração.
Afinal a menina que me substituíu revelou-se ser uma falsificadora.  Quando teve que apresentar os documentos veio a saber-se que nunca tinha sequer frequentado a Escola António Arroio. 
Eu já estava fora e não havia volta a dar.
Entretanto tive a Isabelinha que viveu um ano de sofrimento com tetralogia de Fallot e veio a morrer precisamente no dia de aniversário.
A seguir nasceu o Luís Miguel também ele doente com paralisia cerebral e que a partir dos nove dez anos viveu completamente paralisado numa cama. Morreu com dezoito anos.
Um dia procurou-me o senhor Mota a pedir-me para ir substituir a D. Cacilda, sua mãe , que se reformara. E lá fui eu assumir a responsabilidade das quatro classes da primária no Colégio de S. Joaquim. A D. Cacilda, já muito idosa na altura, ensinava como tinha aprendido nos seus tempos mandando às urtigas o novo programa. Foi uma revolução  naquela sala com um ensino mais moderno, com cartolinas com as letras e as palavras que iam aprendendo espalhadas pelo chão ou papéis recortados ou papel frisado para os trabalhos manuais.
A porta da sala tinha um vidro estrategicamente localizado à altura de quem passava e muitas vezes dei com os olhos do Sr. Mota aterrorizados com toda aquela confusão. Nunca me disse uma palavra de reprovação e tanto gostou que, quando o Colégio fechou, me pediu para eu levar os alunos para minha casa até todos completarem a quarta classe. Entre outros tinha como alunos o Miguel,  o José Luis e o Rui respetivamente o filho e os sobrinhos.
Lá fiz um colégio em casa onde se vieram juntar a Teresinha Peres e a Cristina Maldonado como alunas do pré escolar.
A Teresinha viria a ganhar o segundo prémio do " Natal visto pelas crianças"  com um desenho e colagens apresentado numa folha de jornal. Hoje é professora de desenho fazendo jus aos dotes que já se adivinhavam quando criança.

Antes de Cabeça de Carneiro já tinha passado por outras escolas : Ourada, Glória e Mártires. Penso que a Escola dos Mártires fosse a primeira. Lecionava lá nessa altura a minha cunhada Natália e eu ia substituir uma regente escolar a que chamavam menina.              .
Eu tinha 19 anos, pequenina, com uns 40 kg, parecia bem mais uma menina que outra coisa.
A Natália não esteve com meias medidas: chamou todas as pessoas que ali viviam, os alunos e ali botou discurso.
Que eu era uma professora como ela e nem queria saber de alguém me chamar de menina! Era a Senhora professora  D. Maria Helena! Nem mais!
Eu estava capaz de me enfiar pelo chão abaixo muito envergonhada até porque o meu feitio não era para aquelas coisas. Bem me importava a mim que me tratassem por menina, por Maria Helena ou por outra qualquer maneira que quisessem...
Proibiu a Maria Felismina e o João Armando de me tratarem por tu como sempre o tinham feito porque agora era Professora!!! Para eles seria a prima Maria Helena! Coitadinhos...
Mas ela era mesmo assim toda virada para estes preconceitos. Já não ouviu os alunos da Mata tratarem-me por tu e pelo meu nome. Ficaria no mínimo bastante escandalizada, coitada.

CAGEÇA DE CARNEIRO

CABEÇA DE CARNEIRO

O Director da Escola do Magistério quando não gostava de uma aluna, que era o meu caso, dizia que deviam ir ser professoras para S. Matias ou Cabeça de Carneiro. Em S. Matias havia um padre que fazia a vida negra às professoras e Cabeça de Carneiro ficava perdida no fim do mundo onde só se chegava indo de burro.
Tanta sorte tive que a profecia se cumpriu e fui mesmo parar a Cabeça de Carneiro. No ano em que fui colocada tinham acabado de abrir uma estrada até à entrada da aldeia onde umas grandes rochas impediam a passagem para ir mais além.
 A aldeia era um atraso de vida com casas de pedra onde apenas se via cal à roda da porta e das janelas. A casa onde fiquei hospedada tinha três divisões: a cozinha com um lume de chão permanentemente aceso para meu deleite e o quarto do casal e dos filhos que dava passagem para o meu quarto.
O sr Chilrito dormia numa esteira na cozinha. Dizia ele que" com uma manta de retalhos e uma esteira de atabua toda a noite um homem sua".
Eu tinha lençóis brancos mas na cama delas eram de um riscado preto e branco mais preto que branco.
O chão do meu quarto era de ladrilho todo debruado de riscas brancas de cal e tinha a cama e uma cómoda. Havia uma janela para a rua e era alegre e com o mínimo de conforto. No outro quarto não me lembro de ter visto mais do que a cama.
Na cozinha por cima da mesa havia uma copeira onde pousava uma enorme caneca de um vidro grosso de piquinhos que estava sempre cheia  e onde todos iam bebendo e tornando a acabar de encher, nunca sendo lavada.
Eu fazia a minha comida e, quando era coisa que levasse mais tempo a cozer como grão ou feijão, deixava à guarda da dona da casa. Um dia, ao chegar mais cedo, vejo-a a deitar mais um pouco de água no feijão do dito copo. Fiquei toda enojada mas pensei que tudo o que comera até ali levara o mesmo tratamento e comi e soube a pouco. Comia com eles à mesa e todos os dias se repetia o mesmo ritual: dizia a mulher com uma enorme tigela à frente: miga Chilrito! E o homem lá migava as sopas enchendo a tigela de alto popo.
O garrafão ficava no chão a seu lada e ia enchendo um único copo, que corria a roda bebendo à vez tanto os pais como a filha adolescente ou o mais pequeno de sete anos apenas.

Toda a gente bebia bem na aldeia e, quando entrava na sala pela manhã, tresandava a aguardente que os miúdos bebiam logo que se levantavam para 'matar o bicho'.
As mulheres frequentavam a venda e enchiam sussessivamente de aguardente garrafas que teriam sido noutra era de anis escarchado e ainda conservavam lá dentro a "arvenzinha". Uma vez vi eu uma rapariga, com um bebe que mal andava,  entrar na venda para comprar a aguardente e, como sobrava da garrafa, pediu um copo que pôs à boca guardando ainda um resto para o filho. Não sei se a criança já estaria habituada mas o que é certo é que desta vez ficou mal e até perdeu o andar.
A colega que me antecedeu era do norte e frequentava a taberna onde também bebia o seu copo de vinho...
Como não havia ainda estrada, para chegar à escola, tinha que andar 4km de burro.
A aldeia era toda construída em cima de rocha e essa colega percorria-a toda de cântaro à cabeça quando ia ao poço. Deviam achar que eu era uma 'menina bem' porque não fazia nada semelhante.
Fui muito bem recebida por toda a gente e todas me convidavam para"ir dar o chá" a casa delas. Todas as pessoas se tratavam entre si por "mana".
Ó mana hoje vem dar o chá na minha casa! Aceitei e lá fui passar o serão. Sentadas ao lume de chão, coisa que eu adorava, vi pôr numa cafeteira que já estava a aquecer, uma enorme quantidade de ervas de várias qualidades que não consegui identificar.
Muita conversa e o chá sem aparecer. Lá para o fim do serão sai a cafeteira do lume com um líquido preto que mais parecia café. Era intragável mas a boa  educação fez-me beber alguns goles. Nunca mais aceitei ir 'dar o chá'...

Um dia a minha mãe resolveu mandar-me uma encomenda pelo correio. Havia um senhor que me ia levantar o ordenado* a Reguengos. Ia de bicicleta e nesse dia prestou-se também a trazer-me a encomenda.
 Estava um calor dos diabos e a lata,que era disso que se tratava, andou toda a tarde ao sol. Tinha dentro umas costeletas panadas que rescendiam como as favas do Eça.
Chegou mesmo à hora do almoço e achei que não devia comer aquele petisco sozinha. Chegaram para todos e adoraram pois nunca tinham comido tal coisa.
Ainda fui para a escola mas pouco tempo lá me demorei e sentada num bacio, com uma bacia à frente, lá me fui desfazendo das malditas costeletas.
O sr Chilrito trabalhava na estrada e pouco depois chegou a casa no mesmo preparo. Passámos os dois uma terrível noite e, quando eu no outro dia me desculpei pelo mal causado, responde-me:
  Não se aflija minha senhora, isto não foi das costeletas! É coisa da lua, olhe que até o meu porco andou na mesma. Os restos das costeletas tinham feito as delícias do bácoro...
Como não havia casa de banho ele toda a noite frequentou o chiqueiro...

Havia na aldeia uma loja e o dono , diziam as pessoas com grande admiração,  até tinha a Lisboa ! Mas o melhor é que ele dizia que tinha aparecido na televisão. Nessa altura ri-me do assunto e só muito tempo depois é soube que a tv, ainda em fase experimental, tinha feito uma sessão suponho que na feira popular, onde apareciam no écran todos os que passavam  à frente das máquinas de filmar. Logo calhou que se encontrasse aquela hora, naquele dia, naquele local ...

Contaram-me que um homem que vivia com a filha de apenas quinze anos, abusava dela. A rapariga dormia em cima de uma arca pois nem cama tinha. Era aí  que o pai a ia buscar e, sob a ameaça de uma arma, a obrigava a deitar-se com ele.
A minha irmã Natália foi algumas vezes passar uns dias comigo e, numa dessas ocasiões,  falou com a rapariga que lhe contou as condições em que vivia e lhe pediu que a livrasse daquele martírio. Condoída, levou-a consigo para Estremoz.
No outro dia de manhã, antes de ir para a escola, batem-me à porta e ali estavam dois guardas armados dizendo que se não pusesse ali a pequena ainda naquele dia teriam de me  levar presa. Perguntei-lhes se tinham conhecimento das condições aviltantes em que ela vivia mas responderam-me que eu não tinha nada com isso e que o pai é que mandava nela e fazia dela o que quisesse. Visto a esta distância isto até parece mentira mas naquele tempo era assim.
Com uma enorme revolta tive que ligar à Natália para que a viesse trazer quanto antes.
Quando fui para a escola nesse dia apareceu-me uma pessoa a dizer que me fosse esconder em casa porque o homem andava armado a ver de mim para me dar um tiro. Não passou de um susto porque, nesse mesmo dia, a Natália veio de taxi trazer a pequena. Poucos dias depois apanhou uma boleia, talvez de algum caixeiro viajante, e por lá se foi perder por Lisboa onde não conhecia ninguém e sem ter um centavo no bolso.
Gostava de saber o seu fim mas não auguro nada de bom.

A aldeia todos os anos se animava pelas festas da Santa Cruz. Era uma manifestação semi profana semi religiosa. Havia uma casa toda forrada com colchas e com o ouro das pessoas da aldeia pendurado. Era a casa onde era guardada a Santa Cruz que era um objeto pesado carregado de ouro.
As duas raparigas que lhe iriam pegar levavam todo o ano a treinar-se levantando em peso com as duas mãos o cântaro quando iam buscar água ao poço. Também tinham de treinar o cântico que era uma ladaínha muito comprida que eu ouvi vezes sem conta à filha dos donos da casa que ia ser uma das mordomas e cantava: levanta a Cruz Madanela...
Faziam uma espécie de duas procissões que levavam à frente cada uma das mordomas, a Madanela com o peito todo coberto de prata, enquanto a outra o levava cheio de ouro. A terra era paupérrima e não sei donde saía tanto ouro.
Ao encontrarem-se as duas procissões, a Cruz era levantada e recebida pela outra tudo acompanhado pelos cânticos estridentes. Nesse momento uns tantos rapazes, os Carabineiros, armados de espingardas davam tiros simultâneos para o ar o que se repetia de tempos a tempos.
Só na aldeia da Venda ali perto assisti a uma festa semelhante e não tenho conhecimento de que se faça em mais algum lugar. Não metia padres e não devia ser do agrado da igreja.

Perto da nossa casa havia uma pequena loja/taberna e a dona era nossa visita assídua. Um dia apareceu-nos com um aspecto diferente do habitual. Vinha com muitas queixas e às minhas perguntas diz-me: aí mana lavei hoje a cabeça e fiquei doente. Não estava habituada porque há muito tempo que não a lavava. Nem sou capaz de me pentear. Trazia os cabelos escorridos até ao rabo pois costumava enrolá-los num enorme troço. Quando ela falava de muito tempo tratava-se seguramente de alguns meses...
Estive cerca de cinco ou seis meses naquela terra e sempre a vi com a mesma saia sem fecho e apertada  com um alfinete dama.
Uma vez levei um boné de orelhas para o gaiato da casa que era meu aluno e nunca mais o tirou da cabeça dormindo sempre com ele.

O senhor Coimbra, um caixeiro viajante de Estremoz, uma vez que por lá passou, disse- me muito admirado de me ver por ali:
Como pôde vir parar a um ermo destes? No meu trabalho conheço muito do país mas nunca estive numa terra tão atrasada como esta. Deve estar a cumprir alguma pena...
Gostei de estar em Cabeça de Carneiro e, apesar de estar lá pouco tempo, criei laços de amizade com toda a gente.
Muitos anos depois voltei à aldeia que estava completamente mudada. Grandes casas, ruas onde os carros podiam andar,  mais comércios. Toda a gente se lembrava de mim e fizeram-me uma grande recepção. Convidaram-me logo para a festa que teria lugar pouco depois. Uma senhora fizera uma promessa e pelas próprias mãos construira uma espécie de capela onde era agora guardada a Santa Cruz com mais dignidade.
Até hoje nunca mais lá voltei mas gostava de ter notícias daquela gente tão simpática.

terça-feira, 30 de dezembro de 2014

A PRIMEIRA VEZ QUE ME PERDI

Em criança não me lembro de alguma vez me ter perdido. Antes de ir para a escola primária só saía de casa acompanhada pelos meus padrinhos esceção apenas para as fugidas a casa do meu amigo Carlinhos que morava a poucos passos da minha casa.
Quando comecei a frequentar a escola, já em casa dos meus pais, ia sempre sozinha embora quase tivesse que atravessar Estremoz. Bem diferente do que acontece agora com as crianças a serem acompanhadas quatro vezes por dia e, maior parte deles, de popó.
Conhecia bem toda a cidade e não havia hipótese de me perder.

Já adulta fui estudar para Évora e, aí sim, inúmeras vezes me perdi. Sempre que me afastava do trajeto habitual, desorientava-me e passava a chatear de minuto a minuto quem por mim passava. Muitas vezes fui parar ao outro extremo da cidade. Ainda hoje, não obstante lá ter passado dois anos,  muitas das vezes que vou a Évora, lá estou eu a perguntar às pessoas como chegar ao local onde quero ir...
Uma vez fui com a Ana Maria Albardeiro a uma ação de formação na Escola do Magistério Primário. Durou mais tempo que o previsto e quando saímos já era tarde da noite. Dirigimos-nos para o carro mas, onde estava ele? Nenhuma de nós fazia a menor ideia e ali nos pusémos a andar à toa na esperança de o avistar ou que ele viesse ter com a gente...
Começámos a perguntar a quem passava numa Évora quase deserta aquela hora.
A Ana só dava uma pista: tinha avistado uma palmeira quando estava a estacionar o carro.
Lembro-me de termos encontrado um grupo de raparigas que nos indicou um caminho. Fartámo-nos de andar e chegámos por fim à rua indicada e lá se perfilava uma enorme  palmeira mas,  não era a  nossa  palmeira ...
Cansadas,  já desesperadas, ali ficámos sem saber o que fazer quando por nós passou um carro que,  depois de abrandar,  começou a entrar num portão no fim da rua. Era a nossa última esperança pois já não se via vivalma. Corremos rua fora e chegámos mesmo no momento em que o portão ir ser fechado. Voltamos a dar a nossa única referência mas o senhor, muito amável,  disse-nos que precisava de mais alguma pista. Aí a Ana, espremendo ao máximo os seus neurónios, lembrou que tinha visto no chão umas riscas, talvez nas próprias pedras da calçada. O homem, decerto grande conhecedor da cidade, reconheceu logo o sítio de que falávamos. 
Era no outro extremo da cidade e tinha sido noutros tempos a praça. Os riscos no chão seriam as marcações para os tabuleiros. Meteu-nos no carro e ele mesmo nos levou até lá. 
Fartámo-nos de agradecer e, quando a Ana estava ainda estava tentando ligar o motor, avistámos uns faróis que vinham na nossa direção. Era o nosso'amigo' que nos disse ter ficado  muito apoquentado por ter deixado duas meninas sozinhas àquela hora da noite. 
Vinha então com uma proposta: tinha uma casa onde recebia raparigas e nós podíamos lá ir dormir e partir depois de manhã. No primeiro instante ainda pensámos que a oferta poderia não ser muito honesta mas, mesmo assim, agradecemos mais uma vez a sua amabilidade. 
Pelo caminho, já mais descansadas, reconhecemos a simpatia  e extrema amabilidade deste homem que por duas vezes atravessou a cidade adiando a sua hora de descanso para socorrer duas desconhecidas.
São estas e muitas outras que já me aconteceram  que me fazem ter confiança no ser humano e esperança que o mundo, no futuro, possa ser melhor.







NATAL

24 de Dezembro

Véspera de Natal. Mal posso esperar.
Não sei porque gosto tanto do Natal. Talvez pela ceia, os doces, as prendas.
Cá em casa somos 10 irmãos . Só há prendas muito pequeninas e são só para as meninas.  Este ano somos só 3 que a Natália está em casa do tio Carreço.
Antes de virmos dormir lá alinhámos os sapatos na chaminé.
Avistámos no escritório uma grande caixa de cartão muito bem fechada mas tivemos medo de a abrir.
Subi de má vontade para o quarto com as minhas irmãs e preparo-me para uma noite sem sono.

25 de Dezembro

Nunca me vou esquecer deste Natal.
Depois de uma longa espera, alguma claridade assoma pela janela e diz-me que está a nascer o dia 25. Só aí temos ordem de descer até à cozinha. Acordo as minhas irmãs e precipitamo-nos escada abaixo, atravessamos o quintal (está um frio de rachar e nós em camisa de dormir...) e ali estão estão, alinhados na chaminé, 8 ou 9 sapatos todos com alguma coisa dentro:
Nos sapatos enormes dos meus irmãos há apenas umas cascas de laranja muito enroladinhas ou uns carvões roubados aos tições da lareira.
E nos nossos? Umas miniaturas de tabletes de chocolate num atado apertado por uma fitinha de seda colorida e uns brinquedos que nos enchem os olhos. Estava ali a explicação da caixa mistério. Brinquedos e jogos a que faltavam peças e que vêm da loja do meu tio Chico porque já não têm venda. Mas no meu sapatinho está mais qualquer coisa do que nas minhas irmãs.
O dono da farmácia Costa, que gosta muito de mim, deixou-me uma prenda de Natal.
Perante a inveja das minhas irmãs desembrulhei o pacote e de lá saíu a mais linda boneca que eu já vi.
Não cabia em mim de contente e durante todo o dia não mais a larguei.
Depois do jantar reunimos-nos todos à chaminé à volta do lume de chão. E lá estou eu com a minha prenda de Natal preferida. O quentinho da lareira sabe- me bem, aquece-me as faces. Embora proibida de o fazer, agarro a tenaz para mexer as brasas. Gosto de ver as fagulhas que se levantam logo que lhes chego. A minha mãe ralha, largo a tenaz e levanto-me. Um clarão enorme, chamas azul esverdeadas levantam-se e só após alguns minutos percebo que já não tenho boneca... Era de celulóide e bastaram uns segundos para ser consumida pelas chamas. Choro desesperada . Sei que por muitos anos que ainda viva, nunca mais terei desgosto comparado com este que estou sentindo agora.

COISAS PERDIDAS

J


COISAS PERDIDAS

Os meus filhos, os meus padrinhos, os meus brinquedos, os meus livros, o Carlinhos, a casa onde nasci, o meu sonho de prosseguir os estudos, a lista é interminável


Choro inúmeras perdas que fui sofrendo ao longo dos meus oitenta anos mas vou recordar aqui uma que ainda perdura na minha memória. 
O meu padrinho beijava o chão que eu pisava, como se costuma dizer. Já a minha madrinha era mais austera e não me dava muito mimo. Devia ser para ela uma boneca que queria trazer muito bem vestida com a cabeça cheia de caracóis para mostrar às amigas. Embora apenas me lembre de alguns castigos diziam-me as pessoas que com ela conviviam que era muito má para mim. Ainda há dias numa visita que fiz a uma prima que vai agora fazer 103 anos e é a única sobrevivente daquela época, ela me recordou isso mesmo. 
Custa-me acreditar  mas são muitas pessoas a dizer o mesmo.
Na altura de irem para Angola e me deixarem em casa dos meus pais deu-se um  episódio difícil de acreditar e que de certa maneira prova que as pessoas estavam certas. Queriam levar-me com eles mas os meus pais não deixaram.
O meu padrinho sempre me encheu de brinquedos caros e tinha pentre muitos outros uma linda boneca que chorava e abria e fechava os olhos e um carrinho de verga com uma capota que se levantava onde eu a levava a passear. Mais uns dois ou três brinquedos também assim grandes mas que já não me recordo quais seriam faziam as minhas delícias e entravam todos os dias nas minhas brincadeiras solitárias. 
Pois o que havia a minha madrinha de se lembrar? Assim que chegou a Luanda,  escreveu-me uma carta, a única em sessenta e tal anos que lá esteve, e dentro vinha uma fotografia: numa espaçosa varanda de madeira na frente da vivenda , lá estava ela sentada numa cadeira de baloiço.
À sua frente, estava o carrinho com a minha bela boneca e mais  alguns brinquedos espalhados a seus pés.
Ora quem faz isto a uma criança de seis anos que ainda se debatia com ausência daqueles que eram para todos os efeitos os meus pais, não pode realmente ser pessoa bem formada.ml
Quando cheguei a casa dos meus pais trouxe, mesmo assim, uma grande quantidade de brinquedos (uma arca de madeira cheia) que fizeram as delícias das minhas irmãs que nunca tinham tido nada daquilo.